No filme de 2010 “Dos homens e dos deuses”, realizado por Xavier Beauvois, fala-se de oito monges franceses da Ordem Cisterciense que vivem num mosteiro entre as montanhas do Magreb argelino. Em perfeita harmonia com a comunidade muçulmana local, partilham as alegrias e as dificuldades de quantos os rodeiam. O equilíbrio espontâneo da região fende-se quando um grupo de fundamentalistas mata alguns trabalhadores estrangeiros. Pouco faltará para que a atenção dos terroristas se concentre no mosteiro, apesar de os seus habitantes só realizarem oração e meditação, e não proselitismo.
Quando os oito religiosos entram em contacto com o grupo armado, fazem-no com a mesma naturalidade que marca os seus relacionamentos quotidianos, prestando, inclusive, socorro a um ferido. A sua vida parece, portanto, prosseguir como sempre, de tal maneira que decidem recusar a proposta de uma escolta por parte do exército.
Se os hábitos simples do mosteiro permanecem imutáveis, a tensão na região continua no entanto a crescer, e alguns cidadãos começam a fugir. Neste ponto, os monges são obrigados a interrogar-se sobre a oportunidade de abandonar o espaço. O prior Christian (Lambert Wilson) propõe permanecer, para prosseguir a missão a que se propuseram, mas num primeiro tempo o temor geral parecia ter levado a melhor. A decisão será gradual e sofrida, contudo no fim quase unânime.
O filme de Beauvois apresenta-nos oito monges, mas sobretudo oito homens. Cada um com as suas características, as suas qualidades e os seus limites. Vemo-los absorvidos na devoção, mas também alegres ou litigiosos. Em toda a sua humanidade, em síntese. Tanto que quando o perigo chega às portas do mosteiro, a primeira coisa que perguntarão é como lhe farão frente. Tomados um a um, talvez não conseguissem dar uma resposta. Todos juntos, todavia, encontrá-la-ão.
Ainda que se inspire de maneira explícita na tragédia de Tibhirine de 1996, quando monges franceses foram vítimas do Grupo Islâmico Armado numa Argélia atravessada por profundas divisões, o filme quer ser só à superfície uma obra histórica. A sua beleza reside sobretudo na maneira como se passa subtilmente e de modo impercetível de um olhar naturalista e quase documental a uma dimensão cada vez mais alusiva e metafórica. Os próprios terroristas são mostrados de maneira direta apenas num par de ocasiões, em atitudes não declaradamente belicosas, sendo cada vez mais relegados para um plano de fundo, até se tornarem quase na transfiguração do tormento interior dos protagonistas.
A ideia vencedora de Beauvois é a de jogar no contraste entre uma violência durante muito tempo invisível mas que é perenemente ameaçada e uma paisagem que transmite, pelo contrário, a harmonia de um espaço pacífico e felizmente consolidado. O que torna aquela violência ainda mais insensata. As instâncias ideológicas – reconhecíveis sobretudo no sublinhar como um terreno comum entre fiéis de religiões diferentes é absolutamente possível – apresentam-se a par das filosóficas, centradas na natureza do papel que os protagonistas têm no mundo: a liberdade é de quem consegue fugir ou de quem permanece solidamente ancorado à sua missão? É certo assumir o seu papel até às consequências extremas?
A cena crucial da tomada de consciência daquilo que é certo fazer é narrada sem uma linha de diálogo, sobre as notas do “Lago dos cisnes”, à semelhança de como o silêncio e o canto litúrgico acompanham a vida dos monges
Todo o filme é, por outro lado, disseminado por subtis correspondências que compensam um tecido narrativo e dramatúrgico propositadamente elíptico e avaro de detalhes realistas. As paisagens e os ambientes em que a câmara se demora sempre um instante mais do que o habitual, deixando-os respirar como se tivessem vida própria, mesmo quando os personagens saem de cena, estão estreitamente ligados à vida dos monges cistercienses, votada, entre outros, à contemplação da natureza. Assim como a unanimidade da sua decisão final faz de “pendant” às numerosas cenas em que os vemos empenhados na oração coral. E a cena crucial da tomada de consciência daquilo que é certo fazer é narrada sem uma linha de diálogo, sobre as notas do “Lago dos cisnes”, à semelhança de como o silêncio e o canto litúrgico acompanham a vida dos monges. E se no fim há quem desatende à promessa feita reciprocamente, isso conferirá posterior humanidade ao seu sacrifício, narrado sem nunca cair na armadilha do heroísmo fácil. «A minha vida não tem mais valor que uma outra. Também não tem menos», lê-se no humaníssimo e por isso ainda mais tocante testamento espiritual do verdadeiro Ir. Christian.
É talvez por este pudor que por vezes o filme dá a impressão de ousar menos do que poderia, mas as últimas duas ou três sequências conseguem dar ao resultado total o golpe de asa que se esperava, com uma solução enigmática mas também poeticamente serena.