O que é o “Negro motorista green book”? Um manual para as férias de pessoas de cor. Nos anos 60 elencava as hospedarias e locais onde se podia relaxar sem entrar em contracto com os brancos. Era indispensável, especialmente para os automobilistas que queriam andar pelo sul profundo dos EUA: a América racista, que ainda hoje rejeita a diferença, a América do Ku Klux Klan, e Charlottesville, contra a qual o cineasta Spike Lee nunca deixará de se revoltar.
Volta-se atrás no tempo, a 1962, para interrogar o presente. Estamos no início da década. O 68 está longe, o ser humano olha para a lua a milhares de quilómetros de distância. Neil Armstrong acabou de chegar à agência espacial NASA, os irmãos Kennedy procuram construir um mundo novo, a guerra no Vietname está prestes a acirrar-se.
Em “Green book – Um guia para a vida”, os EUA são descritos como um país ancorado nas velhas tradições, nas tradições de outros tempos. Louisiana, Mississippi, Geórgia parecem ter esquecido a dignidade humana. Brancos e negros não podem comer à mesma mesa, usar as mesmas casas de banho, beber um copo no mesmo bar. Martin Luther King lutava pela paridade, e foi assassinado seis anos depois. O percurso para a igualdade ainda era longo.
Mas alguns iam já para além das aparências, como o porteiro americano Tony Lip e o pianista afroamericano Don Shirley. Da sua amizade nasce “Green book”. Parece que estamos a rever “Missa Daisy”, com os papéis invertidos. Ao volante está Viggo Mortensen (no lugar de Morgan Freeman), enquanto que o seu rico empregador é Maershala Ali (no clássico de 1989, no banco traseiro, estava Jessica Tendy), vencedor do Óscar para melhor ator secundário. O artista e o homem da estrada, os opostos que se encontram para depois se atraírem e criarem uma forte ligação.
Lip e Shirley estudam-se, conhecem-se, tornam-se melhores, num filme “on the road” através das hipocrisias e discriminações. Não faltam, naturalmente, os contrastes, ligados às suas distintas educações: de um lado as boas maneiras, do outro a violência como única solução para cada disputa. Mas à medida que a paisagem do lado de lá das janelas continua a mudar (deserto, bosques, cidades, regiões, campos e casas de proprietários ricos), os dois aprendem a compreender-se, a comunicar. «A estrada é vida”, escrevia Jack Kerouac em “On the road”.
Para os protagonistas, não conta a meta, mas a viagem, não só geográfica. Percorrem grandes distâncias, por alguns meses partilham cada instante do dia. Compreendem a importância do respeito e da partilha. O realizador, Peter Farrelly, abandona os tons da comédia demencial (“Doidos por Mary”, “Antes só que mal casado”, “Doidos à solta, de novo”) para encenar uma narrativa humana, repleta de sentimento, com um par de atores de grande talento. Um filme que faz bem à alma.
“Green book” ganhou também o Óscar para melhor argumento original (Nick Vallelonga, Brian Hayes Currie, Peter Farrelly). Tinha sido nomeado para mais duas estatuetas: melhor ator principal (Viggo Mortensen) e melhor montagem.